O incômodo

Take 1
João sentia um incômodo. Era algo como uma pedra no sapato que ele tentava insistentemente retirar, como o sabor de algo muito doce. Doce como rapadura. Não era segredo sua preferência pelo salgado. Ou ainda como um barulho irritante, tal qual um mosquito zumbindo ao pé do ouvido. Mas não, era algo mais duro.

Take 2
Vejo João. Ele está sentado ao centro de uma sala com piso amadeirado, em uma cadeira com pés palito, em frente a uma ampla janela. Tem uma carta nas mãos. Posso lê-la. Diz assim:
" João, depois de 20 anos de casada, estou indo embora. Cansei de ser um incômodo. Cansei de ser sua pedra no sapato, o sabor doce que você detesta, o barulho do qual você reclama. Vou embora pra Pasárgada! Mas lá não há Rei, chefe, autoridade, ditador, sentado no sofá, assistindo futebol, me exigindo uma cerveja. Lá não tem quem defina minha roupa, ninguém para me mandar equilibrar em cima de um salto ou falar coisas que uma dama falaria. Volto pra minha terra, pois as aves que aqui gorjeiam, jamais o fariam nesse seu deserto asfáltico. Não guardo mágoas. Delas me livro de agora para sempre. Fique com Deus ou com o diabo que te carregue. Quem assina essa carta cheia de mazelas e esperanças é o seu doce incômodo,
Irene"

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