Ele adentrou na casa como o já costumeiro furacão. Era comum, frequente, intenso e emudecedor, tanto que o barulho do portão saindo do trilho não causou o susto boquiaberto do inesperado. Há o emudecimento e a fala. Entre os dois o espaço de uma vida. Uma vida que foi entregue naquele parto a forcéps. Que se tornou causa e justificativa pros dias frios. Anos se passando e aquela juventude escondida no quarto de janelas fechadas com papel kraft. Armários com portas amarradas guardando segredos muito escondidos. Um vai e vem. Arruma e desarruma. Aquece, colore, depois apaga, destrói. Barulho e silêncio colapsando dentro do peito. Variava entre o chute no gato, vítima inocente deste não saber. A cruz carregada em um ombro só, fazendo pender parte do corpo. Uma relutância com essa vida misturada com noites insones de um passado rondando os quartos. A casa estremecia toda semana e seu movimento girava e voltava ao mesmo ponto. O ar estava doentio, cheio de ordens e desmandos e os dois sentavam calados na sala em frente à TV. Era o silêncio da mágoa e tristeza, dos pés e mãos atados, da boca com fita sem deixar falar, palavras engolidas na subserviência. De longe nossos olhos viram pela fresta do quarto o senhor de pé, rígido, braços junto ao corpo tentando manter a dignidade para ele tão cara. Se curvava diante da culpa, do que não sabe, da incerteza. O medo da morte do outro o calava e fazia seguir hipnotizado rumo à cozinha. Expressava suas últimas palavras: Eu sou responsável desde criança, sempre fui. A porta fechou. Meu peito se abriu. O sangue escorreu e sujou o assoalho. Ficou uma marca. No final de semana tentei limpar. Não havia jeito. Era sangue da opressão de muitos anos. Não se limpa mais.
Texto: Wandréa Marcinoni
Imagem: MWolosker
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