Esse ano eu quase me afoguei. Chegamos de Taxi. Ele desceu correndo, alegria nos olhos e a velocidade feroz que só as crianças sabem ter. Entrou no mar e não deu pé. Entrei atrás e a onda em turbilhão nos levou por um breve segundo de uma eternidade. Alguém nos salvou. Esse ano, eu quase me afoguei.
Esse ano eu sangrei. Estava na sala em frente à TV. Foi como um martelar de um prego no dedo. Uma dor. Foi como um tiro. Na verdade foram 180 tiros no carro comum. Foi família e sonhos derramados em uma poça vermelha. Foi um coração que parou. Doeu por toda uma eternidade. A dor tinha cor preta, brilhante, luminosa, preta cor de pele. Esse ano eu sangrei mais de uma vez.
Esse ano eu caí, mas caí de joelhos. Caí junto com a mãe com a camisa da escola com mancha vermelha empunhada. Caí porque ele falou que com roupa da escola haveria respeito. Mas ele caiu e caí de joelhos. Caí com a mãe que sabe da dor infinita e inexplicável da perda do amor mais bonito. Esse ano eu caí. E caí de joelhos.
Esse ano eu parei. Eu parei com a Kombi alvejada pela bala que saiu da arma que resvalou no poste e entrou na alma. Eu parei num tempo e num espaço que não me pertence. Eu parei na inocência da criança que morre no sonho de bailarina. Paro na esperança e no desejo de ser tudo e não ser. Esse ano eu parei.
Mas esse ano eu vivi. Vivi para ver o menino negro da periferia passar embaixo do pilotis e dizer que seu plano é a advocacia. Eu vivi pra sonhar que dá pra ser verdade, que é possível e aí renasci.
Ano que vem continuo o jargão do poeta: "ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro".
Texto: Wandréa Marcinoni
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