Carta para alguém

Se você não está aqui, para que os morangos na geladeira? Talvez eles se percam antes que você volte. Talvez, em vez do chantili, eu faça um biscoito de nata com aquele creme de leite fresco. Para relembrar a infância ou algum outro lugar que não tenha você.

É incômodo pensar que eu mesma terei de decidir o que fazer com cada resto, cada marca, cada futuro desmanchado que ficou. A fechadura estragada, a luminária ainda por instalar, as paredes manchadas (vou cobri-las com papel de parede, já que pintá-las seria uma tarefa nossa).

Andei pensando - o que fazemos na falta, além de pensar? Parece que sempre fica algo a dizer. Em mim as palavras têm surgido como bolhas de sabão: remexo o pote e dali saem os mais lúcidos raciocínios. Pena que no calor da discussão as bolhas não surjam, para nos trazer a leveza de enxergar.

Talvez fosse melhor conversar sempre por carta. Lembra quando surgiram os e-mails e um certo romantismo voltou a fazer parte da nossa vida? Hoje, retomamos a ansiedade das respostas imediatas. O conflito ganhou sua versão móvel e nos acompanha para onde formos, num aparelhinho que antes só esperávamos tocar. Nem quando estamos sós podemos levar o silêncio.

Cartas, não. Cartas são emoções embrulhadas. Enviam dor, lágrima, saudade, fascinação. Quem as recebe sente o calor de quem sente. Cartas aproximam. Já as mensagens instantâneas parecem dar a largada para uma disputa de desencantos.

Deixo registrado, então. Que o silêncio fica melhor com a sua presença. Que a iminência do fim tem o poder de colocar um holofote sobre a verdade, justo quando não há mais tempo para procurar o que se perdeu. Que nos momentos de falta fica evidente o que é de fato importante. Que só compartilhamos com os amigos os momentos difíceis a dois. Não ligo para nenhum deles depois de um dia bom, para contar detalhes da paz que sentimos juntos. Momentos serenos não são cheios de detalhes, eles simplesmente são. Talvez por isso, porque só nos ouvem na hora do aperto, eles passem a torcer pelo fim. Juntos, nós os angustiamos.

Já reparou que só é capaz de ceder numa relação quem está mais seguro e sereno? Pois é, nem sempre estamos. Penso, concluo, choro. São as águas de março fechando o verão. “A saudade é terapêutica”, dissemos um ao outro. Devo estar agora num spa.

Agora que tudo acabou, preciso dizer que foi bom. E confessar que também não foi. As coisas podem ser boas e ruins ao mesmo tempo - a sombra persegue a luz. Agora que tudo acabou, tudo começa no quarto, luz apagada, a ausência gritando feito uma louca encarcerada. Agora que tudo acabou, as paredes dizem verdades que não quero ouvir. Descubro que nada acabou. Vou até a cozinha devorar os morangos. Espera, é a campainha. Acho que é você.

Texto: Cris Guerra
Imagem: Benjamin Lacombe

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