Motim

É primavera, mas o inverno insiste em ficar. Algo me atravessa a garganta como miolo de pão. Há dois dias não como direito-e ainda assim tenho a sensação de que quero me livrar de um bolo no estômago. A cabeça corre a mil e  já está lá na frente, mas a tristeza gorda me invade o corpo como forma de fazer protesto. Estou cansada, sim. Exausta. Trabalho não me tem faltado. Mas o corpo padece do que lhe toma conta. Pode chamar de desapontamento, decepção, frustração. Pode chamar de sonho morto. Chame de impotência também-Não me cabe fazer nada além do que já fiz. Dê a esse mal o nome que lhe aprouver-virose ou estresse, se lhe for mais conveniente. Sua verdade é imutável porque imóvel você permanece. Aprendeu assim. Faz mais de meio século que é assim e não vai mudar agora, talvez nunca. Pela primeira vez quero ficar só. Quero quietude e acolhimento, silêncio e leitura. Quero a maciez da cama coladinha à paz de espírito. Quero as páginas do livro e o carinho do filho- por ora, não mais. Justo essa tristeza que acolhi e aceitei, diferentemente de todas as outras. Justo ela que acarinho e coloco pra dormir ao meu lado todas as noites, como se um filho fosse-um filho que preparo para seguir viagem sem mim. Pois a danada resolveu fazer motim. Deve ser porque não presto atenção nela. Até aprecio certa melancolia, mas essa está me saindo muito topetuda. Está certo, querida, vi que você está aí. Agora ganhe a estrada, que eu tenho mais o que fazer.
Texto: Cris Guerra
Imagem: Arquivo pessoal

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