A dose

Ela abre um espumante barato e brinda sozinha à volta da solidão. Não aquela que dói e fere, mas a solitude escolhida, que lhe abre um espaço macio pra ser. Ao primeiro gole percebe: o espumante é demi sec. Um equívoco para ilustrar a vida. O gole doce na taça rasa antiga de cristal azul que foi da mãe.
Repetições?
Tudo que ela quer é voltar a tomar posse de si. Ser dona dos seus desejos de novo. Quais eram eles?- não lembra.
Não é ruptura, é reencontro.
Desde que se tornou mãe. Desde que tomou posse da dor. Desde que se pôs na estrada. Desde quando?
Onde ela caminha nessa pista?
Há espaço para ultrapassar?
Para onde vai?
Larga o carro a pé para não levar mais peso consigo?
Em alguns momentos ela só quer aumentar o volume do som e cantar bem alto, com o vento nos cabelos. Em outros, quer ter o privilégio de não guiar o carro, com a certeza de ainda assim estar indo.
Ela se entrega demais, se entrega muito, inteira, não sobra nada para si. Nem sabe mais como é sua voz. Ela sai de si ao encontro do outro e deixa sua cama e sua casa vazias, sem o calor da sua presença. E depois cobra do outro o  que lhe falta. Mas foi ela mesma que se tomou de si.
E então ela dança sozinha pela sala e sente o corpo como há muito tempo, com saudade de quem foi.
Para depois dar mais um gole na bebida doce e amargar o gosto da escolha.
Exagerou na dose e a ressaca é toda sua.
Texto: Cristiana Guerra
Imagem: Ann Mei





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