Genealogia


O que me encanta nos estudos de genealogia, é precisamente esse entrelaçamento de vidas que, ao longo do tempo, vão conduzindo seu mistério, sem saberem o que vai acontecer, com o sangue que transmitem, dali a quatro ou cinco gerações. O futuro é, na verdade, uma barreira cega aonde estaremos projetados daqui a três ou quatro séculos...
Mas em genealogia, o passado é uma riqueza que se pode analisar: quando menos se espera, eis que nos aparece algum avô com seus brasões e glórias, alguma vítima das inconstâncias dos tempos, algumas beldades, alguns revoltosos por entre sombras que se confundem, reduzidos a simples nomes, e que foram, no entanto, como qualquer criatura humana, um complexo de esperanças e alegrias, de sofrimentos e decepções, palpitantes em suas datas de nascimento, casamento, testamento e morte.
No desdobramento da árvore genealógica, vemos as ligações que nos tornam comunicáveis com tantas outras vidas e como, de ramo em ramo, estamos todos aparentados nessa infinita floresta que interminavelmente cresce desde o princípio do mundo.
Parece-me poético saber onde estava o meu sangue por velhos séculos e, em meio aos acontecimentos que dia a dia vão urdindo a história humana, onde se situavam esses antepassados que não previam os seus descendentes, como nós não prevemos os nossos.
À margem, porém, do que possam ter sido esses antepassados, e do lugar certo que lhes coube no seu mundo, há para mim um delicioso encanto em alinhar esses nomes de parentes, nomes que refletem a moda, que recebem influências de Reis e de Santos ou que traduzem apenas um gosto pessoal e às vezes brilham como pequenas jóias solitárias na profundidade do tempo.
Alegra-me saber que uma de minhas avós, no séc. XVIII, se chamava Clara dos Anjos. É toda uma festa esse nome: festa de luz e melodia. Mulher com tal nome não parece ter habitado a terra, mas pairado, apenas, entre nuvens e estrelas, como pequena estampa gloriosa.
Mas, no séc. XVI minha avó Solanda aparece como um símbolo, um aviso, uma predestinação. Vejo Dona Solanda a andar sozinha no seu mundo, no seu século, no mundo de todos, em todos os séculos (Dona Solanda que Solandava...). Sola andaria, malgrado seu marido e seus filhos. A solidão é um fato interior, separado das aparências e, que não impede nem a felicidade nem a alegria.
Dona Solanda fez seu testamento e morreu muito perto ainda de seus pais e avós algo famosos, bafejados ainda pelo convívio do Infante Dom Henrique. Seu nome vale, talvez, na órbita poética, mais do que essas mercês honrosas. Porque as honras da Corte passam, mas a aceitação de um destino é uma lição imortal.
Que pensaria Dona Solanda ao saber que esse era seu nome...E como teria obedecido à imposição que os pais cedo colocaram na sua sorte como um pequeno diadema...
Ai, Dona Solanda, a quatro séculos de distância, envio-vos o meu pensamento como uma flor solidária e solitária. Na verdade, muito havemos solandado! e solandaremos!

Cecília Meireles

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